Jean Paul Sartre, o filósofo da mídia


Ainda outro dia, numa troca de e-mails com uma amiga, me peguei dissertando sobre a fenomenologia de Jean Paul Sartre. Não que Sartre seja o precursor desta área de estudos, mas certamente, foi o filósofo mais midiático que já existiu, e por tanto, o filosofo mais lido e comentado do século passado. O problema é que a grande maioria das observações referentes, não esclarece o seu apoio incondicional ao comunismo Stalinista, ou o fato de quase toda sua obra ser uma releitura de Nietzsche e de Heidegger.

Vinculando reflexão e práxis, Sartre sempre defendeu a revolta como premissa básica da existência e fundamento da liberdade do homem. É esse o fio condutor de suas obras ficcionais, dramatúrgicas e filosóficas. O programa de rádio “Temps modernes”, sua reportagem “ Furacão sobre Cuba”, ou mesmo a criação do jornal “Libération”, só mostram o apego de Sartre à utilização do “mass media”.

Sua tentativa pueril de manter uma unidade sistemática de seu pensamento levou-o a erros grosseiros de avaliação, como por exemplo, a insistência em apoiar o ditador soviético Josef Stálin, mesmo quando os expurgos já tinham sido comprovados.
Alguns estudiosos de sua obra consideram-no como sendo o primeiro escritor filósofo, dizem que ninguém havia até então (desde o romantismo) filosofado sobre literatura. Tais declarações foram feitas pelo filósofo francês, Jean-Luc Nancy. No entanto, o livro “Assim falava Zaratustra” é uma obra de ficção de teor inegavelmente filosófico. E, acho que não podemos negar a poesia existente na filosofia nietzscheniana.
Sartre e a relação com Sartre terão caracterizado o que podemos considerar o desequilíbrio do século 20 – “finalmente em si mesmo” – e a abertura nele de uma situação nova. 

Enquanto se opunha a Freud, Sartre abria no meio da tradição da “consciência” a possibilidade de deslocar o “sujeito” não para uma subconsciência, mas para o tecido das relações de forças e de significado nas quais pode surgir o ponto fugaz de uma singularidade.

Aí também Bataille, Foucault, Deleuze e Derrida abordariam de maneira decidida o que Lévi-Strauss chamou em 1962, ao discutir Sartre, de o “mundo da comunicação”, onde essa palavra deveria ser compreendida não como inter-subjetiva, mas como ante-subjetiva e transcendental ou estruturante.

Apesar da frustrada tentativa de manter uma unidade de pensamento, tudo que se vê, são ambigüidades latentes na unidade geral de sua obra. No texto póstumo publicado em 1989 por Annete Elkaïm-Sartre, “Verdade e Existência”, podemos ler: “Toda a verdade é provida de um fora que sempre ignorarei. Assim, a atitude da generosidade é atirar a verdade aos outros para que ela se torne infinita na medida em que me escapa”.

Em entrevista concedia a Paulo Ghiraldelli Jr para o caderno “Mais!” da Folha de São Paulo de 12 de junho de 2005, um dos principais filósofos americanos, Richard Rorty diz que, “A recusa de Sartre em romper com o stalinismo causou um dano real à vida intelectual francesa”. Afinal, Sartre foi comparado certa vez a Voltaire. Em outra parte da entrevista Rorty diz que, “O apoio de Sartre a Stálin talvez seja mais desculpável do que o de Heidegger a Hitler, mas não muito mais. Ambos foram egomaníacos demais para poderem voltar os olhos aos erros de seus passados e reconhecê-los como tais. 

Mas pensadores originais são freqüentemente, idiotas políticos. As observações de Nietzsche sobre eventos políticos de seu tempo são tão insensatas como as observações de Sartre e de Heidegger sobre os eventos que os rodearam (será que Rorty está se referindo ao fato de Nietzsche ser anticomunista?). (...) Sua atitude desdenhosa em relação a Raymond Aron, por exemplo, é difícil de perdoar.”

Sobre o conteúdo da obra de Sartre, Rorty afirma que, se um professor já ensinou aos seus alunos Nietzsche e Heidegger, não existe necessidade de se ensinar Jean Paul Sartre. “A maioria das coisas boas em Sartre poderiam ser encontrada naquelas duas outras figuras maiores”.

O fato é que o existencialismo nunca foi nada mais que uma invenção jornalística (semelhante ao heroísmo de Ernesto Guevara, a liberdade cubana, a internet2 ou o pós-modernismo, nesse sentido). Agrupar Kierkegaard, Nietzsche, Jaspers, Heidegger e Sartre sob uma mesma rubrica não é algo muito informativo.
Todos sabem que o pragmatismo dispensa as disputas metafísicas enquanto elas não fazem nenhuma diferença prática. As figuras tradicionalmente chamadas existencialistas criticam a metafísica com uma tentativa auto enganosa de escapar do tempo e do inesperado. As duas linhas de critica da tradição filosófica ocidental se completam bem. Ambas serão vistas pelos historiadores como uma parte de um longo período de repúdio das tentativas de “ver as coisas sob o aspecto da eternidade”; um repúdio que começou com o historicismo de Hegel e continuou nos dois séculos seguintes.

Sartre esteve no Brasil por volta de 1960, a pedido de Jorge Amado, que disse: “Venha conhecer os problemas concretos com que se defrontam os países subdesenvolvidos.” Sartre vinha de uma viagem a Cuba no início dos anos de 1960 e resolveu aceitar o convite.

Na semana que passou na capital paulista, Sartre foi alvo de mais de 250 artigos na imprensa local. Participou de alguns debates e concedeu uma “entrevista” à TV Excelsior. Entre os debatedores estavam Bento Prado Jr., Fernando Henrique Cardoso, Ruy Coelho e o psicanalista Luís Meyer. Coloquei “entrevista” ente aspas porque, segundo Bento Prado Jr. Antes de entrar no palco, o casal (Sartre e Simone) lhes comunicou as perguntas que gostariam que fossem feitas – todas elas, segundo o filósofo, “eram orientadas na direção da defesa da Argélia (em guerra com a França) e de Cuba”.
Ainda segundo Bento Prado Jr, “Ao final de três horas de entrevista, Sartre ficou surpreso com o fato de que uma empresa capitalista pudesse manter tanto tempo no ar um programa que era pura propaganda socialista” (são os malefícios da nossa civilização).
Sartre foi um ardoroso defensor da apropriação das “mass media” pelos intelectuais e teria se servido muito mais da TV se ela não fosse propriedade do estado francês, o qual criticava.

A celebridade de Sartre como intelectual data do pós-guerra e ele próprio a explicou como sendo uma compensação que a França encontrou para o fato de ter se tornado uma potência secundária: sua cultura torna-se um produto de exportação de grande valor simbólico e seus escritores em conseqüência tornaram-se “bens nacionais”. Talvez por isso a supervalorização.

Em 1960 quando Sartre apoiou o movimento de independência da Argélia, os conservadores pediram ao general De Gaulle que perseguissem o autor de “O ser e o nada”, recebendo uma resposta ao mesmo tempo irônica e reverente: “Não se prende Voltaire”. Suas maiores polêmicas não ocorreram com interlocutores distantes, mas com amigos de longa data: Albert Camus, Maurice Merleau-Ponty e Raymond Aron.
A ruptura com Albert Camus teve início com a publicação de “O homem Revoltado”, livro de 1951 em que um dos alvos de Camus são as legitimações da violência por intelectuais de esquerda que se alinhavam com os comunistas no momento em que informações sobre os expurgos stalinistas vinham a publico (alguém mais lembrou do ocorrido entre Proudhon e Marx quando da publicação da “Filosofia da miséria”?). Sartre, que em 1952 assumiria seu apoio incondicional ao partido comunista Francês, fez publicar no mesmo ano, em “Les Temps Modernes”, um artigo no qual Francis Jeanson acusava Camus de negar qualquer papel à história e à economia na gênese das revoluções (“Camus não acreditava nas infra estruturas”, escreve Jeanson), desaguando numa “moral de Cruz-Vermelha”.

Camus endereça uma carta irônica e violenta ao “Sr diretor de “Temps Modernes””: “Estou cansado de ver velhos militantes que nunca recusaram nenhuma das lutas de seu tempo receberem lições de eficácia por parte de censores que nunca colocaram nada além de suas poltronas no sentido da história”, escreve ele aludindo ao fato de que Sartre dormia na Comédie Française no dia da Libertação de Paris, ao fim da segunda guerra mundial.
A carta saiu na revista junto com a resposta de Sartre, que começa com a famosa declaração de ruptura – “Meu caro Camus, nossa amizade não era fácil, mas sentirei falta dela” – e prossegue na defesa de seus engajamentos num momento de ascensão da Guerra Fria que não toleraria neutralidades:
“A cortina-de-ferro é apenas um espelho, e cada uma das metades do mundo reflete a outra metade. A cada volta da porca aqui corresponde uma volta do parafuso lá, e afinal, aqui e lá, somos os parafusadores e os parafusados”.

Em termos menos violentos, mas por razões semelhantes, a parceria de Sartre e Merleau-Ponty em “Les Temps Modernes” chegaria ao fim em 1953, numa troca privada de cartas. O motivo, agora, era a divergência quanto ao papel do filosofo diante da história presente: para Sartre, o distanciamento postulado por Merleau-Ponty em relação aos fatos era um refúgio subjetivo, que o desautorizava a julgar qualquer ato político; para Merleau-Ponty, Sartre era um refém dos fatos que, sob a alegada aceitação das ambigüidades de cada situação, tinha a ambição de ter um domínio sobre a marcha da história.

Ironicamente, coube ao liberal Raymond Aron – único desses amigos que, desde os tempos em que ambos estudavam juntos na École Normale Supérieure, divergia frontalmente de Sartre – ser aquele com quem ele se reconciliaria no final da vida, em 1979, quando as ideologias cederam lugar a uma luta comum pelos direitos humanos dos “boat peoples”, os refugiados vietnamitas que tentavam escapar do inferno criado pelo radicalismos esquerdista.
A Náusea – um dos romances mais conhecidos de Sartre – normalmente é lido como contrapartida ficcional de “O ser e o nada”, obra que transformou Sartre numa celebridade do pós-guerra.

Os contrastes entre a trama sumária e as longas meditações do protagonista fazem com que o livro pareça um “romance tese”, destinado a ilustrar a idéia de contingência que o autor iria desenvolver no “Ensaio de Ontologia Fenomenológica”, lançado em 1943. Os “caminhos da liberdade” ilustram a “Critica da Razão Dialética” (livro em que Sartre colhe os desdobramentos histórico-político de suas investigações metafísicas).
A Náusea é um livro apresentado na forma de um diário datado “por volta do início de 1932”, o “manuscrito” traz a história de Antoine, Roquentin, historiador que, após viajar pela África e pelo oriente, realiza uma pesquisa em Bouville (localidade imaginária em que se reconhece Havre, cidade na Normandia em que Sartre lecionou em 1931-36).

Ali, entre leituras na biblioteca, o cotidiano do hotel em que mora, passeios pela cidade portuária e uma ou outra aventura sexual, ele persegue a possibilidade de constituir algo “necessário” na medida em que sente o “roçar do tempo” e vai se confrontando com a gratuidade de coisas e seres que poderiam perfeitamente não existir.

Ainda que um do primeiros títulos pensados por Sartre para o livro, “Melancolia”, tivesse ressonâncias psicanalíticas, o registro psicologizante é evitado: a opção final por “A Náusea” (que se deve à intervenção do editor Gaston Gallimard) traduz perfeitamente o estado de exasperação de Roquentin.
A indeterminação do ser, que deflagra essa náusea de uma contingência essencial, o lança numa espécie singular de liberdade – que consiste em construir um sentido para além de si. Num mundo em que Deus está morto, as criaturas se transformam em seres errantes, que podem se agarrar à má-fé de suas construções imaginárias ou criar algo que seja “necessário”.

O jazz, que Roquentin escuta obsessivamente, traduz tal imagem de uma totalidade construída. Nessa música estruturada sobre o improviso, a seqüência das notas é como a facticidade (entendida sartrianamente como nossa condição concreta, o puro gato sem fundamento que está além de nossa decisão, como o corpo ou a época em que nascemos).

E como o músico de jazz, que ordena as notas que lhe chegam sem plano definido, a consciência livre age a partir de estruturas dadas pela gratuidade dessa narrativa sem narrador que é o mundo.
Há em “A Náusea” uma espessura propriamente literária, que inclui citações explícitas e cenas que remetem a passagens da alta ficção francesa, como a cena em que Roquetin olha Bouville do alto (uma referência ao Rastignac, de Balzac, contemplando Paris em “O pai Goriot”) ou a longa descrição do momento em que a idéia do absurdo e da contingência irrompem, como uma “Madeleine” Proustiana, na consciência do anti-herói de Sartre.

J. Fagner

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