Carta aos meus futuros filhos




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Stevenson certa vez escreveu que “Cada livro é, num sentido profundo, uma carta particular aos amigos do escritor. Somente eles apreendem a significação inteira, descobrem a notícia íntima, as afirmações de amor, as expressões de gratidão espalhadas para eles em cada linha. O público é apenas o generoso patrocinador que se incumbe das despesas postais.” Me pergunto o quanto disso é verdade no referente aos artigos tomados em separados. Começo com essa citação exatamente por tomar outra linha de descrição da história de Ipiaú. Quando escrevi ‘Dias Gomes transpirava Ipiaú’, tinha em mente uma narrativa extrínseca, algo fora de mim, que mostrasse a nossa história do ponto de vista dos historiadores e não do de quem viveu parte dessa história. Agora, aos 29 anos, sinto-me impelido a deixar um registro aos filhos que talvez, um dia terei. Caso não os tenha, fica o registro para aqueles que por uma aproximação maior no meu círculo de amizade tomei por parentes, inclusos alunos e possíveis leitores.




O fato, amigo leitor, é que não vejo como falar de certos períodos sem falar da correspondente experiência. Mas, comecemos por um período em que nem minha mãe existia: – Quando a cidade começou a expandir sua área urbana entre a década de 1950, 1960 e 1970, grande número de pessoas se aglutinava nas margens do Rio das Contas, visto que a direção contrária ao rio ainda era constituída principalmente de fazendas e era muito mais fácil invadir as margens do rio para construir seu barraco do que enfrentar os proprietários das terras que hoje formam os bairros Euclides Neto, Bairro Popular e Monteiro Lobato (antigo Sítio do Pica-pau).



Como as enchentes eram constantes, além do problema com doenças tropicais havia o aborrecimento com os barracos arrastados pelas águas e conseqüentemente as famílias desabrigadas, que na grande maioria das vezes eram alojadas pela prefeitura municipal em colégios que se tornavam abrigos provisórios. Passado o período, voltavam a montar os seus barracos na beira do rio outra vez.



Muitas pessoas não tinham alternativas. Passada a enchente lá estavam novamente construindo seus barracos nas proximidades das águas.



Quando nasci – em agosto de 1979 – boa parte desses problemas já estavam se resolvendo, ou já haviam se resolvido. O Dr. Euclides Neto durante o seu mandato (1963 a1967) desapropriara algumas terras para loteamento, efetivara o primeiro projeto de reforma agrária do país (a Fazenda do Povo) e um pouco depois (já no final da década de 1970), liderada por agitadores como Adenor Soares, bairros como o então Sítio do Pica-pau e a famosa “Invasão” (nome dado por se constituir de área invadida) já davam seus primeiros sinais embriológicos.



Minha mãe conta que as pessoas que moravam no então Sítio do Pica-pau, sempre que precisavam se deslocar à noite para o centro da cidade, pela estrada que posteriormente se tornou a Avenida Pensilvânia, organizavam-se em grupos que vinham iluminando o caminho com candeeiros ou lampiões a querosene. O medo era comum. Agressões físicas, assaltos eram uma constante, começando daí o receio da população de outros bairros em freqüentar o “Bairro Novo” como ficou conhecida.



Um dia (por me faltar os detalhes), acredito que era o ano de 1984 ou 1985, fui com minha avó à Praça Walter Hollenwerger assistir a um comício de um influente político da época. Tudo que me recordo desse dia é de uma feroz discussão que minha avó fomentou com o dito político. Não me recordo os motivos ou mesmo como saímos daquela confusão, mas dias depois estava com minha avó em seu barracão no então bairro da “Invasão” (visto que minha mãe trabalhava no estado do Rio de Janeiro para mandar o dinheiro das despesas do então pequeno Fagner), quando alguém bateu à porta. Ao abri-la, minha avó recebeu um violento golpe de facão que rasgou seu pulso. Não sei se por conta do meu grito ou por alguma insólita crise de consciência que o acometeu ao ver uma criança presenciando a cena, aquele homem de roupa escura, mascarado, com um facão na mão e respingos de sangue na camisa fugiu correndo ladeira abaixo.



Sai desesperado a procurar os raros vizinhos que logo apareceram alertados pelos meus gritos. Olhei minha avó (mulher forte e determinada), ferida, deitada ao chão enquanto algumas vizinhas amarravam tiras de panos ao redor do seu ferimento e uma tia que acabara de chegar, se deslocava em busca de um carro que pudesse levar a vítima até o hospital mais próximo.



Fiquei pensando em como os anseios dos ricos se sobrepunham ao destino dos mais pobres. Começava ali a entender a mendacidade daqueles que foram eleitos para nos proteger – claro que pensava tudo isso com outras palavras –.



Quando o carro finalmente chegou, eu não chorava mais. Só pensava em como eu poderia fazer para tirar a minha família daquele estado…



J. Fagner

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