Jornalismo, boatos e linchamentos

Culpar Rachel Sheherazade pelo incidente ocorrido na cidade do Guarujá é querer manipular a informação com o intuito de calar uma voz destoante. Mesmo que ela tenha errado em seu julgamento, a distância entre seu comentário e a tragédia ocorrida no Litoral Paulista é considerável.

Banco de imagem/ sxc.hu
Quatro lobos dilacerando um animal que acabam de caçar, semelhante ao comportamento de alguns grupos de jornalistas.


Um dia (por faltar-me os detalhes), acredito que era o ano de 1984 ou 1985, fui com minha avó à Praça Walter Hollenwerger assistir a um comício de um influente político da época. 

Tudo que me recordo desse dia é de uma feroz discussão que minha avó fomentou com o dito político. Não me recordo os motivos ou mesmo como saímos daquela confusão, mas dias depois estava com minha avó em seu barracão no então bairro da “Invasão” (visto que minha mãe trabalhava no estado do Rio de Janeiro para mandar o dinheiro das despesas do então pequeno Fagner), quando alguém bateu à porta. 

Ao abri-la, minha avó recebeu um violento golpe de facão que rasgou seu pulso. Não sei se por conta do meu grito ou por alguma insólita crise de consciência que o acometeu ao ver uma criança presenciando a cena, aquele homem de roupa escura, mascarado, com um facão na mão e respingos de sangue na camisa fugiu correndo ladeira abaixo. 

Saí desesperado a procurar os raros vizinhos que logo apareceram alertados pelos meus gritos. Olhei minha avó (mulher forte e determinada), ferida, deitada ao chão enquanto algumas vizinhas amarravam tiras de panos ao redor do seu ferimento e uma tia que acabara de chegar, se deslocava em busca de um carro que pudesse levar a vítima até o hospital mais próximo. Fiquei pensando em como os anseios dos ricos se sobrepunham ao destino dos mais pobres. Começava ali a entender a mendacidade daqueles que foram eleitos para nos proteger – claro que pensava tudo isso com outras palavras –. Dias depois a população tentou linchar o homem que supostamente havia agredido minha avó. 


VIAGEM NO TEMPO 


Minha narrativa pula agora para novembro de 2008: 

Estava com minha namorada em casa quando ouvimos um rumo que vinha da rua. Ao abrir a janela para ver o que estava acontecendo me deparei com uma multidão que levava um jovem negro, amarrado a uma tora de madeira que prendia seus braços voltados para trás, pelas ruas do bairro. Os justiceiros queriam fazê-lo desfilar pelas ruas para servir de exemplo a outros baderneiros. Aquele jovem, supostamente, havia roubado e esfaqueado um pai de família. Os dois fatos que acabo de narrar aconteceram na cidade de Ipiaú, interior da Bahia. 

Mais alguns casos como esse já aconteceram por lá desde então. Fico imaginando quantos linchamentos acontecem pelo interior do País anualmente. 

Conto essas histórias para chamar a atenção ao fato de que alguns formadores de opinião têm atribuído à jornalista Rachel Sheherazade a responsabilidade pelo incidente ocorrido na cidade do Guarujá

Linchamentos, infelizmente, fazem parte da história desse país. É uma barbaridade que demonstra a falta de confiança no Poder Público, mas isso acontece há muito tempo, muito antes do comentário feito pela Rachel. 


Também é importante salientar que a jornalista não induziu ninguém a fazer linchamento ou justiça com as próprias mãos. Ela disse apenas que na situação em que as coisas se encontram “a atitude dos vingadores é até compreensiva”. 

Você pode até não concordar com a opinião da jornalista, mas ela tem o direito de se expressar. É assim que funciona em regimes democráticos, esse é o preço a se pagar. A própria Rachel já explicou o comentário: 



“Os indícios de linchamentos e tentativas vêm crescendo: de quatro por semana antes das manifestações de rua de junho de 2013 para um por dia depois das manifestações e nos últimos dias tendem a se aproximar de dois casos diários. Pode ser conjuntural, mas é indicação de que a sociedade está descontrolada. Expressão de falta de confiança nas instituições, medo e insegurança.”, escreveu José de Souza Martins em seu artigo Seres sem rumo, publicado no jornal O Estado de S. Paulo

O programa Observatório da Imprensa, que foi ao ar no dia 13 de maio de 2014, trouxe um debate bem equilibrado sobre o assunto. Espero que você assista e tire suas próprias conclusões.

 

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