Caminhos da educação

Evitar que os jovens aprendam pela cópia e repetição nos prende em um loop infinito da redescoberta de preceitos básicos. Como se precisássemos reinventar a roda a cada nova decisão tomada.




Só para ficar no clichê, direi que tudo aconteceu numa manhã ensolarada de agosto. Os professores estaduais haviam sido convocados para uma reunião pedagógica, dentro da sala do Centro de Línguas, na escola em que leciono. Os sete professores aguardavam sentados com olhares e expressões impacientes. Se questionavam em silêncio, e às vezes em voz alta, que horas terminaria aquele suplício. A vice-diretora, juntamente com as coordenadoras, nos apresentava o levantamento realizado pela avaliação diagnóstica de matemática e português ocorrida semanas antes. E nós acompanhávamos com certo tédio a exposição, afinal presenciamos diariamente essas dificuldades, não havia necessidade de uma avaliação nos dizer o que já sabemos.

Segundo a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), o Estado de São Paulo se encontra na 7ª posição no ranking nacional, e esse desempenho foi alcançado através da avaliação do Programa Internacional de Avaliação de Alunos (Pisa) no ano de 2012, último resultado publicado. Já no âmbito internacional, o Brasil ocupa a vergonhosa posição de número 38 dos 40 países avaliados em 2014 e, apesar do avanço em sua colocação, se compararmos com a edição de 2012, não houve progresso na qualidade do ensino brasileiro, pois sua ascensão se deu exclusivamente pela maior queda da qualidade ocorrida na educação do México do que a um aumento na brasileira. Essa análise, que utiliza como indicador o Pisa e os índices de alfabetização e aprovação escolar, ocorre em países da América, Europa e Ásia, não tendo aderência dos países africanos.

Enquanto nós professores torcíamos para que aquela reunião pedagógica terminasse rápido, a vice-diretora começou a elencar as atividades que a escola oferecia para reforçar ou recuperar nossos alunos e propôs aos professores que elaborassem atividades, planos de aulas e métodos que suprissem a carência dos alunos. Nesse momento minha dispersão, que estava chegando ao auge, começou a desaparecer. Há algumas semanas entrei em contato com uma unidade do Kumon. Eu, que já tinha ouvido falar, mas não conhecia o método, fiquei encantada em poder ver de crianças a adultos fazendo reforço, tendo um aprendizado que realmente iriam internalizar e não jogar fora quando o professor virasse as costas.

O Kumon é um método de ensino criado na década de 1950, no Japão. Essa metodologia chegou ao Brasil em 1977, pela cidade de Londrina no Paraná. Inicialmente, apenas com o ensino de matemática e, depois, ampliando para o curso de japonês e português. Hoje, ele está espalhado por todo o Brasil. O Kumon busca incentivar a autonomia do indivíduo e a aceitação ao seu próprio ritmo e tempo de aprendizagem, respeitando a evolução lenta e gradual do ser através do autodidatismo.

Levantei a mão, costume que trago desde meus tempos de escolas, para me pronunciar. Comecei a narrar minha recente experiência com o método Kumon e como estava encantada com ele, mas rapidamente fui interrompida pela vice-diretora que foi taxativa ao falar: “Não recomendo este método, pois ele se baseia na repetição e isso é robotizar os alunos” (sic). Quê? Meu choque foi grande, olhei para os lados em busca dos meus colegas que me confirmassem que ela realmente disse aquilo e pude perceber que o espanto não tinha sido só meu. Busquei o olhar da coordenadora que estava em pé e encostada à parede ao lado, próxima ao televisor que usava para passar os slides com os diagnósticos, e embora percebesse certa relutância sua, ela apoiou a vice-diretora.

A repetição é um meio fundamental para que os indivíduos internalizem o conhecimento, ou seja, para que eles apreendam. Pesquisas do Massachusetts Institute of Technology (MIT), no Estados Unidos, comprovam que quando o cérebro se depara com um conhecimento novo, as atividades cerebrais se intensificam, havendo um grande gasto de energia. Isso acontece quando começamos a falar, andar, escrever, ler e até aprender a dirigir. Afinal, quem nunca teve dificuldades nas aulas da autoescola? Se concentrar na embreagem, freio, acelerador, câmbio e direção, tudo ao mesmo tempo, parece uma tarefa impossível. Até que a repetição nos permita executar essas tarefas de modo natural. Nosso aprendizado ocorre através da repetição, pois quando internalizamos o conhecimento, o cérebro não necessita gastar tanta energia com uma ação rotineira, já que ela se torna hábito. William James, filósofo e fundador da psicologia moderna, afirmava, em 1892, que nossa vivência consiste em uma massa de hábitos. Em 2006, a Duke University publicou uma pesquisa que afirma que mais de 40% de nossas ações diárias não são compostas por decisões e, sim, por hábitos que adquirimos ao longo da vida.

Na Grécia Antiga, a ideia de escola era tida como um modelo para preparar os jovens para a vida pública, a política etc. As crianças passavam por uma educação doméstica que era composta pela leitura e memorização das principais obras e poetas da época, Platão afirmava que essas obras eram cheias de preceitos morais e que valorizavam os grandes feitos dos antepassados. Posteriormente, esses jovens se instruíam em diversas áreas, desde as teatrais até a ginástica; isso, somado à vivência em sociedade, moldava os valores morais e cívicos. Apesar de o método sofrer diversas mudanças, sua essência permaneceu por mais de um milênio na sociedade. Milhões de crianças apreenderam muitos de seus conhecimentos através da repetição e depois de sua compreensão, desenvolveram diversas habilidades. Não há como contestar a eficácia que esse método tem quando Sócrates, Platão e Aristóteles - os fundadores da filosofia ocidental - são frutos e divulgadores deste formato educacional.



Os cientistas do MIT iniciaram uma série de pesquisas da década de 1990 relacionadas ao hábito. Conforme o estudo avançava, eles percebiam que os gânglios basais, um nó de tecido neurológico, tinha grande importância na formação dos hábitos. O experimento feito em ratos notou que os animais com lesões nos gânglios basais possuíam dificuldades de aprender a atravessar labirintos e/ou memorizar como abrir os recipientes de comida. Ao colocarem sensores nos cérebros dos ratos, os cientistas percebiam que a primeira vez que os ratos percorriam um labirinto em busca da comida, seus cérebros possuíam grande atividade e à medida que iam repetindo o trajeto, essa atividade diminuía, ao mesmo tempo em que sua trajetória acelerava. Os estudiosos concluíram que à proporção que o caminho se tornava mais automático, as atividades cerebrais dos ratos se reduziam, pois precisavam pensar cada vez menos. O automatismo também cessava a atividade na área cerebral que comandava as decisões. Notou-se que a internalização desse conhecimento, torná-lo um hábito, dependia essencialmente dos gânglios basais e estes eram responsáveis pelos hábitos mesmo quando o restante do cérebro adormecia.

Esse estudo, publicado no livro O poder do hábito, de Charles Duhigg, também pode ser comprovado por meio da história de Eugene Pauly, apresentada pelo autor, que ao ter uma encefalite viral, na década de 1990, perdeu a capacidade de reter a memória recente, mas durante anos demonstrou ser capaz de apreender novos hábitos, como se alimentar e voltar para casa, mesmo não sabendo onde se localizava a cozinha em sua casa ou aonde morava.

Com a querela, os sete professores já haviam despertado de seu torpor e tentei argumentar que a repetição é um processo importante para a aprendizagem, para que se internalize o conhecimento e, posteriormente, o aluno possa, a partir deste conhecimento, construir seu raciocínio lógico e crítico. Afinal, quem nunca aprendeu tabuada ou os tempos verbais copiando à exaustão até decorar? Eu aprendi assim. Lembro-me claramente de minha mãe me dando aulas de reforço, pois não tinha como pagar professores particulares. Nós duas sentadas à mesa de vidro da sala de casa e eu calculando a tabela de tabuada de 1 ao 10 à exaustão e depois, em português, eu conjugava todos os possíveis tempos verbais que ela sugeria. Recordo de ter um caderno exclusivo para conjugar e flexionar verbos. Confesso que existem tempos verbais que dificilmente eu uso ou ouço ser pronunciado, mas eu sei como conjugá-lo! E isso só foi possível graças a essas extenuantes repetições na sala de casa. Sei que, assim como eu, muitas outras crianças aprenderam dessa forma e hoje, na fase adulta, ainda se lembram de como conjugar o verbo no pretérito mais que perfeito ou quanto é 7 x 6.

Segundo pesquisa realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) publicada em setembro de 2013, 13,2 milhões de pessoas (8,7% da população nacional) são analfabetas, com 15 anos ou mais, um acréscimo de 0,1% se compararmos à pesquisa realizada em 2011. Já a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) informa que o Brasil é o 8º entre os países com maior número de analfabetos adultos. O Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), outro meio de se avaliar a educação no Brasil, afirma que apenas o Ensino Fundamental I (1º ao 5º ano) conseguiu alcançar a meta, já o Ensino Fundamental II e o Médio ficaram 0,2 ponto abaixo do que o Governo Federal esperava.

Fiquei consternada com a posição da vice-diretora, que considera a repetição na aprendizagem como meio de robotizar o aluno, e percebi que muitos professores me apoiavam, mas não queriam se estender num debate que poderia prorrogar o tempo deles nessa sufocante sala e, para respeitá-los, preferi também não me prolongar, afinal, parecia óbvio que ela não mudaria de opinião nem eu.

Os celulares anunciaram 11h30. Estava na hora do almoço, saímos da sala e descemos as escadas em direção ao refeitório, nos sentamos para almoçar e conversar, nas mesas que habitualmente os alunos fazem uso. Por curiosidade, perguntei aos professores, principalmente aos de matemática e português, como eram suas respectivas disciplinas ensinadas hoje, melhor dizendo, como o Estado quer que se ensine tabuada e conjugações verbais? Para minha surpresa, minha colega de português afirmou que não querem que se ensinem os tempos verbais com repetição e, sim, com o uso implícito em textos e, na matemática, não é muito diferente. Depois dessa informação, comecei a compreender porque alunos de 7ª e 8ª séries não sabem diferenciar passaram de passarão e não saibam ver horas em um relógio analógico. Bastaria conhecer a tabuada do 5. Lembro-me de estar sentada na carteira da escola, na 2ª ou 3ª série do Fundamental, e da professora desenhando diversos círculos no quadro negro e fazendo alguns ponteiros com giz colorido para nos explicar como se vê as horas em um relógio analógico. Vale lembrar que naquela época os celulares não eram tão populares. Às vezes tenho a impressão de que o relógio de pulso é um objeto em extinção e acho graça da curiosidade de meus alunos quando abro o visor do meu relógio de bolso para me certificar quanto tempo ainda tenho de aula. “Prô, o que é isso? É uma bússola? Posso ver?” e, em seguida, vem a pergunta que até dói ouvir: “Prô, que horas são aqui?” E eu digo: “Por que você não me diz?” – “Ah, prô, não sei ver horas em relógio de ponteiro.” Os professores, ao menos eu, sentem uma tristeza ao ouvir essa afirmação vinda de alunos de 13, 14 anos.

O Ideb é um índice de avaliação das escolas privadas e públicas do Brasil, lançado pelo Ministério da Educação em 2005, e registrou pela primeira vez, em 2013 uma queda no desempenho das instituições privadas, mostrando que apesar dos problemas se concentrarem nas escolas públicas, as particulares também estão sofrendo problemas semelhantes.

Após um delicioso almoço, o que é uma raridade nas escolas públicas, voltamos ao suplício da reunião e, dessa vez, sem nenhuma interrupção. Rapidamente fomos liberados e pudemos voltar aos nossos afazeres.



Segundo a Lei de Diretrizes e Bases da Educação, a LDB, durante o ensino fundamental, a criança desenvolve a capacidade de aprender, dominando a leitura, a escrita e o cálculo. A compreensão do ambiente natural e social, do sistema político, da tecnologia, das artes, da cultura dos direitos humanos, e a formação de atitudes e valores. E por fim, o fortalecimento dos vínculos familiares, os laços de solidariedade, respeito e tolerância recíproca que alicerça a vida social.

Na prática, o que nós professores encontramos nas salas de aulas são crianças nas 6ª e 7ª séries que não sabem ler ou escrever. Não conseguem ver horas em um relógio analógico, pois não sabem tabuada, e que possuem os laços familiares rompidos devido a tantos conflitos e abandono. Essas crianças, mesmo não alcançando o nível de aprendizagem que a série ou o ano em que estão inseridas exige, são constantemente aprovadas devido a uma brecha na legislação que permite a progressão continuada. Ou seja, o problema é sucessivamente empurrado para frente.

Em pesquisa do Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo (Apeoesp) confirma-se que a progressão continuada não estimula o aprendizado entre os alunos e 46% destes afirmam que foram aprovados sem aprender todo o conteúdo. Segundo o coordenador regional da Apeoesp, Ronaldo N. Mota, a forma como a progressão continuada é usada pelas escolas e pela Secretaria Estadual da Educação tem como objetivo promover o aluno independentemente dos aspectos educacionais e de aprendizagem.

Ao sair da escola às 14h daquele dia de sol quente com os outros professores, me dei conta de que, possivelmente, eles se esqueceram da reunião e do que foi dito, mas eu não conseguia apagar de minha memória a afirmação da vice-diretora. A consternação ainda era evidente em minha expressão e esse episódio deixou uma marca em mim e diversos questionamentos.

Acredito que o sistema educacional não está cumprindo sua função e quem está sofrendo as consequências são as crianças e os jovens que terminam a escola com inúmeros déficits na aprendizagem, sem possuir noções básicas de cidadania e ética, e sem condições de se inserir no mercado de trabalho competitivo.

A autonomia caminha junto com a responsabilidade, mas nas escolas presenciamos crianças e jovens adquirir sua independência sem conhecer suas responsabilidades e obrigações.

Eu, como professora, apoio o exercício do livre pensar desde que, para isso, se faça uso do conhecimento que a humanidade desenvolveu ao longo de toda sua história. Caso contrário, nos prenderemos num eterno ciclo de reinvenção da roda. 

 
Texto: Luana Aguiar Werneck
Imagens: Banco de imagens do sxc.hu

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