30 anos de luta

Esta reportagem foi publicada, originalmente, na primeira edição da Revista Juazeiro.




Ana Lúcia dos Santos entra apressada em seu apartamento, o relógio na parede marca 9h20min. Manhã de quarta feira. A porta do banheiro está fechada, ela bate para confirmar. “Já estou saindo”, sua mãe grita lá de dentro. “Logo hoje, que cheguei atrasada”, comenta resignada.
Ana Lúcia está retornando da academia que frequenta nas manhãs de segunda a quarta. Costuma chegar por volta das 8h10 min. Toma banho e desce logo em seguida para atender aos clientes do salão de beleza que administra há quase 30 anos e que fica no térreo do prédio em que mora. Nessa manhã em especial, Ana Lúcia se atrasou por ter parado no caminho para ajudar um amigo. 


Augusta Geralda dos Santos, mãe de Ana, abre a porta do banheiro e sua filha entra esbaforida. “Aceita um cafezinho?”, pergunta à filha. A porta do banheiro é fechada às pressas sem espaço para respostas.

Ana Lúcia é mais uma migrante nordestina que veio tentar a vida no Sudeste.

Já de banho tomado, roupa trocada, Ana começa a atender à sua primeira cliente do dia. Cristiane dos Santos, sobrinha que divide o apartamento com Ana Lúcia e dona Augusta, já está trabalhando. Aline, cabeleireira do salão, também. Ana Paula e Fabiana, outras sobrinhas, costumam chegar um pouco mais tarde.


Ana Lúcia dos Santos é baiana, natural da cidade de Jequié e tem 52 anos. Chegou a Santos em 13 de dezembro de 1978. Na época saiu de Ubatã, cidade ao Sul da Bahia. Trabalhava na roça durante a semana e vendia sapatos numa barraca de feira aos domingos. Uma amiga de sua tia que à época visitava a família a convenceu a tentar a vida no Estado de São Paulo.



“Tecnicamente ela [Ana Lúcia] não é uma migrante nordestina. Em 1978, a Bahia e Sergipe formavam a Região Leste do País”, observa Marcos Azevedo, sociólogo, professor da Faculdade de Tecnologia e Ciências (FTC) de Salvador, referindo-se ao fato de que só no ano de 1979 a Bahia passou a fazer parte, formalmente, da Região Nordeste. 


Uma semana após chegar a Guarujá, Ana recebeu uma proposta para trabalhar como doméstica, que aceitou de prontidão. Menos de 15 dias de trabalho e a mulher que a trouxera começou a exigir que ela pedisse um adiantamento no emprego para ajudar a pagar o aluguel. Ana Lúcia foi morar com a patroa, dessa forma economizaria e não se sentiria mais pressionada. 


Segundo dados publicados em abril de 2011, no periódico SP Demográfico – Resenha de Estatísticas Vitais do Estado de São Paulo, durante o período de 1970 a 1980 a média de migrantes que chegavam ao Estado de São Paulo era de 308.317 pessoas ao ano. Esse número teve uma queda significativa durante a década de 1980.


O pai de Ana Lúcia, Pedro dos Santos, era caçador. Também negociava cavalos e mulas, no interior da Bahia, para manter o sustento da esposa e dos oito filhos. Dona Augusta cuidava da casa. Por conta de suas ocupações seu Pedro, como era conhecido, mudava-se constantemente e levava os rebentos junto. Isso somado às dificuldades financeiras não permitiu um bom desenvolvimento escolar para as crianças.



Dados publicados, pelo Pnad/IBGE de 2009 mostram que 59% dos baianos acima de 30 anos, que moram no Estado de São Paulo, não possuem escolaridade além do nível fundamental.


“Quem tem um nível mínimo de escolaridade consegue emprego em seu estado. Mas a demanda de serviços braçais é bem maior no eixo Rio - São Paulo”, explica Marcos Azevedo, referindo-se ao fato de que a maior parte das pessoas sem um nível mínimo de escolaridade acaba trabalhando na construção civil ou em empregos que exigem mais do físico do que da mente.


Ana Lúcia morou com a primeira patroa até que ela falecesse dois anos depois. Durante esse período, começou a estudar no Colégio Stella Maris à noite para completar o curso primário. A comunicação com a família era difícil. Pouco sabia sobre seus pais ou irmãos.


Durante uma aglomeração em volta de um acidente de carro na Rua Januário dos Santos, no bairro Aparecida, conheceu Hermes Elizesche, natural de Ponta Porã, Mato Grosso do Sul, 20 anos mais velho. Elizesche gostou da moça e lhe ofereceu a oportunidade de aprender o ofício de manicure depois do seu expediente como doméstica. 



Diariamente ela frequentava o salão depois do seu horário de trabalho.


“A dupla jornada é algo comum entre os nordestinos que buscam no Estado de São Paulo”, explica Azevedo. “Muitas vezes é a vontade desesperada de recuperar o tempo perdido”.


Hermes e Ana casaram-se dois anos depois daquele primeiro encontro.


Ainda preocupada com a família, cinco anos após seu êxodo, Ana Lúcia voltou à Bahia para visitar seus familiares. O que viu a deixou preocupada. Seus pais moravam agora em Ipiaú, uma cidade a 350 km de Salvador. Na época, Ipiaú era uma cidade basicamente agrícola que se sustentava da monocultura cacaueira.


A família de Ana Lúcia, que não era de fazendeiros, vivia com certas dificuldades. Seus irmãos quase não tinham instrução escolar. Seu pai continuava caçando, pescando e negociando animais. Um inchaço nas costas, na região do ombro direito o incomodava muito. Ana Lúcia trouxe o pai para Santos. Depois de uma bateria de exames no Hospital Guilherme Álvaro, descobriu-se um câncer enraizado. Após algumas idas e vindas seu Pedro faleceu em 25 de dezembro de 1989.


Ana Lúcia tinha, nessa época, havia comprado uma casa para os pais – que sempre moraram de aluguel ou em casas de taipa feitas em terreno alheio – e ajudava semanalmente com as despesas de mercado, tratamento médico e o que mais precisassem. “Eu preferia ficar sem, mas mandava um dinheiro semanalmente”, conta com os olhos marejados.


Dados publicados no periódico Comunicados do Ipea nº115 – Perfil dos migrantes no Estado de São Paulo, de 6 de outubro de 2011, apontam que os nordestinos e nortistas compõem a classe mais baixa, financeiramente falando, do Estado de São Paulo. Ainda segundo esse estudo, apenas 5% dos migrantes baianos conseguem atingir as classes mais altas.


Mesmo tendo que ajudar financeiramente a família, Ana Lúcia conseguiu, junto com o marido, no ano de 2006, comprar um apartamento.
 

Texto e fotos: José Fagner

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