O bom leitor é solitário

Os textos não possuem a mesma velocidade e amplitude de comunicação que os vídeos, mas ganham em profundidade e exatidão

Imagem: José Fagner
Notebook em cima de uma mesa plástica branca. Em cima da mesa é possível ver uma par de óculos, na frente do computador, e um mouse no formato de carrinho.

Tenho enfrentado alguma dificuldade para exercer minha atividade de leitor. Dividindo um espaço pequeno com três pessoas de hábitos díspares, preciso ter certo traquejo social para evitar conflitos. Quem mora, ou já morou, em cidade grande sabe o quão caro são os aluguéis. Morar sozinho num município como São Paulo é um luxo para poucos. Por isso mesmo tenho pensado em me mudar para o interior. Afinal, é muito provável que eu incomode aos outros moradores da casa, no mínimo, na mesma medida que sou incomodado.

Ler, para mim, sempre foi uma atividade solitária. Algo que é parte da minha introspecção. Conheci pessoas que diziam gostar de estudar ouvindo heavy metal no volume máximo; outros contam realizar diversas atividades ao mesmo tempo: “eu gosto de ler assistindo TV, enquanto respondo às mensagens do Whatsapp”, me confessou alguém. Tenho cá minhas dúvidas sobre a veracidade dessas informações. Esse papinho de geração x, y, z, nunca me convenceu. Reconheço que os hábitos da turminha mais jovem é diferente, mas as limitações humanas continuam as mesmas. A não ser que tenhamos sofrido alguma mutação genética, no melhor estilo X-men.

Certa vez um amigo, que era diretor de um cursinho pré-vestibular em que eu lecionava, precisava de uma ajudinha para escrever sua monografia num curso de especialização. Ajudei o colega sem nunca ter recebido nada por isso. O cara era meu amigo, o que mais eu poderia fazer?

Ele me confessou que não tinha entendido muito bem o texto. Mas achava que estava muito bom porque o seu orientador havia aprovado os rascunhos. Eu finalizei todo o trabalho e entreguei. Restava imprimir e apresentar. Ele tirou nota máxima e nós não falamos mais do assunto.

Com o passar do tempo percebi que a fama de intelectual desse cidadão havia atingido níveis impressionantes. Ele se vangloriava de conciliar os estudos com partidas de videogame. Não é que o jogo eletrônico fosse utilizado como válvula de escape, em vez disso, a brincadeira era utilizada como parte da didática para seus estudos de química.

Fiz certo esforço para compreender esse mecanismo. Minha capacidade de abstração não me permitia entender a associação entre uma partida de futebol num Playstantion e o estudo de hidrocarbonetos.

Impossível não recordar do personagem Astolphe, do livro Ilusões Perdidas, de Honoré de Balzac. Em certo ponto da história o autor nos conta que:
 
Astolphe passava por ser um sábio de alto nível. Burro como uma porta, ainda assim escrevera os verbetes “açúcar” e “aguardente” de um Dicionário de Agricultura, dois textos pilhados, nos menores detalhes, de todos os artigos de jornais e de todos os antigos livros que tratavam desses dois produtos. Todo o departamento do Charente acreditava que ele andava ocupado com um Tratado sobre a cultura moderna. Embora ficasse trancado a manhã inteira em seu gabinete, ainda não tinha escrito duas páginas nos últimos doze anos. Se alguém ia vê-lo, se deixava flagrar misturando papéis, procurando uma nota perdida ou aparando sua pena, mas empregava em ninharias todo o tempo passado no gabinete: lia por muito tempo o jornal, esculpia rolhas com o canivete, traçava desenhos fantásticos sobre a folha de mata-borrão, folheava Cícero para pinçar ao acaso uma frase ou trechos cujo significado podia se aplicar aos acontecimentos do dia; depois, à noite, se esforçava em encaminhar a conversa para um assunto que lhe permitisse dizer: “Em Cícero encontra-se uma página que parece ter sido escrita para o que acontece hoje em dia”. Então, recitava seu trecho, para grande surpresa dos ouvintes, que diziam entre si, mais uma vez: “Realmente, Astolphe é um poço de sabedoria”.
Coisa muito semelhante acontecia a esse meu amigo.Percebi sem muita demora que, pelo fato dele lecionar, ano após ano, a mesma disciplina, já havia decorado trechos e fórmulas. Seu conhecimento não ia muito além. Ele costumava ler as revistinhas dos Testemunhas de Jeová como se fossem periódicos científicos. Tentou argumentar comigo várias vezes usando essas revistas como referência. E olha que se dizia católico praticante.

O amigo leitor não faça mau juízo sobre mim. Não me considero um grande pensador ou algo do gênero. Tenho plena consciência da minha ignorância e da minha pequenez. E é exatamente por isso que aquele comportamento me deixava intrigado. Como é que uma pessoa que precisava da ajuda intelectual de um ignorante como eu era tido como uma das maiores mentes daquela comunidade? Até hoje não obtive a resposta. Mas é sabido que em terra de cego...

Por conta de coisas como essa é que não acredito em quem diz realizar profundas leituras enquanto assiste à TV, mexe no celular e ouve músicas no fone de ouvido, tudo ao mesmo tempo.

Mas eu gostaria de saber a sua opinião sobre isso. Você tem alguma experiência que contradiga a minha posição? Compartilho com a gente.


José Fagner Alves Santos

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