Conto: Você acredita em visões?


Um conto que escrevi há mais de dez anos. Publico aqui com todos os erros e incoerências do rascunho original:

 

"Você acredita em visões?" foi isso que João Carlos escreveu em seu bilhete de despedida, minutos antes de cometer suicídio. Soube do ocorrido através do jornal em que ele trabalhava como fotógrafo, era um jornaleco de terceira, absurdamente sensacionalista, de péssimo gosto. As fotografias de João, no entanto possuíam certa beleza mórbida. Conheci João no lançamento de um livro sobre poesia, em que ele estava a trabalho, fotografando alguns figurões da alta sociedade local. Aquele jornaleco era mesmo uma piada, ao invés de focar a matéria no autor do livro, tecia elogios aos convidados da festa, obviamente para alavancar seus patrocínios, visto que as figuras fotografadas eram em sua grande maioria anunciantes deste mesmo jornal.

Como ele estava a trabalho, a minha conversa com ele neste dia não foi muito longa, trocamos poucas palavras e ele ficou de me ligar. Eu tinha realmente me impressionado como um fotógrafo de tanto talento – mesmo, estando o trabalho muito cru, praticamente em estado bruto – trabalhava para um jornal tão ruim. Ao longo de certo tempo de convivência, fiquei impressionado com a figura por traz daquela aparência medíocre. Ele não falava muito sobre si, mas possuía certa erudição. Conseguia conversar com autoridade sobre praticamente todos os assuntos possíveis, tinha uma sensibilidade impressionante, e um senso de honra e honestidade que são muito raros. Tornamo-nos grandes amigos, perdíamos horas conversando sobre os mais variados assuntos. Costumávamos nos encontrar no barzinho da Hérica, um lugar pra lá de simplório, mas que nos permitia certo sossego para nossas extensivas conversas. Na verdade, foi ele quem me apresentou o local. Não gostava de lugares muito agitado, ou freqüentado pela classe média alta. Era um homem de poucas ambições. Soube pela Hérica, que o meu amigo fora jornalista um dia, mas alguns problemas com a justiça o afastaram da profissão. Ela também me disse que depois deste período ele passou alguns anos trabalhando como embalador num mercadinho ali perto, até que chegou ao posto de caixa, e que só recentemente havia conseguido o emprego como fotógrafo. Eu realmente ficava impressionado a cada revelação, era fantástico como um homem dotado de tão boa escolaridade não se sentia depreciado ao exercer trabalhos que não explorassem o seu verdadeiro potencial. A Hérica me disse também, que tudo aquilo fora causado por uma grande depressão por um amor perdido, mas eu nunca soube o nome da mulher capaz de abalar o psicológico do meu pobre amigo. Lembro-me que um dia antes do suicídio, jantamos juntos. No meio de uma longa conversa sobre as diferenças aristotélicas na concepção do mundo do ponto de vista platônico, o meu amigo João faz uma pausa, coça a garganta, olha pra mim e diz: - Fagner, você acredita em visões? E eu sem entender a pergunta: - Como? E ele: - Eu costumava perguntar isso para uma pessoa. Eu sabia o que ela faria, sabia como ia terminar, e sempre escrevia para ela perguntando, você acredita em visões? Mas, ela não entendia o que eu queria dizer, sempre me respondia que sim, mas não entendia do que se tratava.


Neste ponto da conversa eu já havia ficado curioso: - Você é um homem religioso, João? E ele: - Sou ateu, graças ao meu bom Deus! Mas, algumas coisas eu não sei explicar, sempre tive lampejos de cenas ou acontecimentos que invariavelmente se realizavam depois de certo tempo. No começo eu achava que era tudo uma questão de lógica, que as coisas eram óbvias demais e por isso, previsíveis, mas aí comecei a ver coisas que não eram tão previsíveis assim. Neste ponto eu comecei a achar que eram simples coincidências, mas até as coincidências têm limites. Comecei a perceber que as minhas visões eram só sobre o que poderia acontecer se continuasse por aquele caminho, mas que talvez fosse possível evitar determinadas coisas se mudasse a direção. Tentei avisar várias vezes, mas tinha medo que ela me achasse louco, até que um dia...

E eu, já sem jeito: - Fala exatamente do que?


E ele: - Nada, meu bom amigo, nada.

E pegou um copo cheio de conhaque que estava em cima da mesa e virou todo de vez. Bebia muito o João, provavelmente para afogar as mágoas das quais ele se negava a me contar. O fascinante é que ele sentia quando estava ficando bêbado, e começava a falar menos, a se recolher, procurava sempre ir para casa dormir até que a bebedeira passasse. Era um homem tímido no tocante à sociabilidade. Dias depois da tragédia, estive na casa dele, era uma pequena quitinete num conjunto residencial. Como o dono do conjunto já me conhecia há muito e sempre me via por lá, consentiu em me dar a chave para que eu pudesse tentar encontrar algo que me ajudasse a entender o motivo de tamanha loucura. Todo o local já havia sido periciado pela polícia, era muito difícil que eu encontrasse algo de relevante.
O local era muito simples, tinha um velho computador num dos cantos da casa, uma esteira de rime no chão ao centro, e duas poltronas encostadas na parede. No quarto, além da cama e do guarda-roupa, havia no chão um grande baú todo esculpido, com imagens das pirâmides um camelo, o Sol e um grande deserto. Ele me dissera certa vez que aquele velho baú fora esculpido por sua mãe. Dentro deste baú encontrei documentos antigos, alguns livros com marcações e anotações feitas nas bordas das páginas que, acredito eu, eram as de maior relevância, e algumas fotografias de uma linda menina que aparecia hora sozinha, hora com ele. Aquele rosto me parecia familiar, demorei um pouco até que a memória parasse de me trair, e percebi que aquela era a doutora Jamile, a minha psicanalista. Coloquei as fotografias dentro de um envelope laranja que encontrei dentro do baú e fui de motocicleta até o consultório dela.

Foi bastante complicado conseguir falar com ela, eu não tinha visita marcada naquele dia, e a secretária se negava a ajudar. Após longa insistência eu finalmente consegui um horário, depois que todos os pacientes fossem atendidos.

Ao entrar no consultório, ela logo me perguntou: - O que faz aqui hoje, Fagner? E eu, já tirando as fotografias do envelope: - Queria que a senhora me ajudasse a entender algumas coisas! Ela pegou as fotografias e disse: - Há muito eu não via estas fotos. Deu uma nostalgia agora.

E eu, contei-lhe a história, perguntei sobre que visões ele falava, mas ela foi dura: - O meu envolvimento com o João, se deu quando eu ainda era muito jovem. Depois que o relacionamento acabou ele teve dificuldades de aceitar e entrou em depressão. Criou para si alguns mitos, talvez para tornar sua dor suportável. Eu até lhe receitei líthium algumas vezes, mas ele se negava a tomar. Eu fiquei muito triste com o que aconteceu, mas ao menos agora ele terá paz. João era maníaco depressivo, não sei se sabe disso.

Não tive muito mais o que perguntar. Agradeci a ajuda, e me retirei da sala, visto que eu estava me sentindo estranho diante de tal comentário.
Enquanto saía do consultório, me lembrei daquelas palavras na noite anterior à sua morte: - Acredita em visões, Fagner?

- Não, sou muito cético.


E ele: - Eu também era. Não imagina o que a consumação dos atos visionados podem fazer à mente de um homem cético.


J. Fagner

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